Notas complementares


O Pinho Redondo

O Pinho Redondo era a marca emblemática da Miuzela. Infelizmente caiu, ou foi feito cair, em 2006. A propósito deste acontecimento, transcreve-se um excerto do texto de Carlos Esperança, publicado no Blog “Miuzela Arriba” em 02 de Agosto de 2006:

“A imensa copa era excepção numa terra sem árvores, expulsas pelo cultivo da vinha e o amanho das hortas. Só os freixos delimitavam os lameiros e alguma figueira teimava em sobreviver por entre as fisgas de terra que separava os barrocos. Este Verão fui à Miuzela, como de costume. O pinho redondo tinha desaparecido do horizonte, quando fiz a curva junto à vinha do Panelo e não o vi ao passar o Espadanal. Só muito perto vi o tronco de que logo afastei o olhar.
Alguém feriu as raízes e, como um veneno que se entranha, secou a árvore que fazia parte da aldeia e da memória. Primeiro foram as pessoas que amei, agora até a vista do velho pinheiro me roubaram. O pinho redondo era o último elo de uma cadeia de afectos que se vai rompendo. Não assisti aos gemidos do pinho manso no seu estertor, não vi o gigante tombar, sofri apenas o vazio da memória. Dolorosamente” .


Na Miuzela e na sua área envolvente estão assinalados vestígios históricos de várias épocas que atestam a antiguidade das origens da freguesia e a sua importância. Como mostra o Professor Doutor José Pinto Peixoto, na obra “Miuzela – a Terra e s Gentes”, a localização geográfica e outros factores favorecem também esta conclusão:

“A região da Miuzela tinha boas condições para a existência do homem pré-histórico, mesmo nos períodos do Paleolítico e do Neolítico. Tem um vasto horizonte, no qual se avistava a caça e o inimigo. Tem grutas e cavernas naturais, nas várias ravinas, e por baixo dos barrocos; tem a água das fontes; correm rios e riachos. Dispunha de carne de javali, de cabras, de gamos selvagens, de coelhos e de aves. Havia peixes e rãs nos rios Côa, na Ribeira e nos riachos. Tinha as bolotas dos carvalhos, as castanhas, os mustajos, os abrunhos, as amoras e as ginjas. Tinha verduras frescas e naturais, como as meruges, as "baldroegas", as "leitugas", etc.. (…).
Os lusitanos teriam ocupado esta nossa região (entre Douro e Tejo), já no séc. IV a. C., de mistura com os turdulos, segundo Frei Bernardo de Brito (Monarchia Lusitana, vol. I, Cap. XXX)”.

Sepulturas rupestres de Porto Mancal

As sepulturas cavadas na rocha, referenciadas no lugar de Porto Mancal e em outros locais próximos da Miuzela, parecem ser, até agora, o registo arqueológico mais antigo da freguesia. A sua datação não está ainda estabelecida com rigor, nem existem registos oficiais das mesmas. O Professor José Afonso Brardo, no texto acima transcrito, remonta a sua origem ao período celta.

A discussão sobre a datação das sepulturas escavadas na rocha, identificadas em vários outros locais da Beira Alta e do Nordeste Transmontano, permanece inconclusiva entre a comunidade científica. Há quem as considere pré-históricas (Breuil); a maioria dos autores situam-nas na época romana, nos finais do Império (séc. IV/V); outros são de opinião que pertencem já ao período pós-romano, havendo ainda os que defendem uma cronologia mais longa entre os séculos VIII e o século XIII, enquadrando a maioria das sepulturas nos séculos IX e X, no período da Reconquista. Numa recente obra, Célio Rolinho Pires defende que “este tipo de sepulturas rupestres, nomeadamente essas que se encontram por aí perdidas por cerros e matagais, são, no geral, lusitanas, pertencem cronologicamente à época do ferro, funcionaram, estou em crer, no mínimo, até ao advento e instalação do cristianismo (séculos II e III DC), e estiveram integradas em um tipo de povoamento disperso que precedeu a romanização” (“Na Rota das Pedras”, edição do autor, 2011, pp. 217-241). Amorim Girão fez uma importante precisão ao distinguir entre sepulturas abertas toscamente em rocha viva e sepulturas mais aperfeiçoadas, considerando as primeiras, por regra, mais antigas, e relacionadas geralmente com núcleos de população proto-histórica, vizinhas dos locais onde se encontram, e as segundas mais recentes, pertencentes em muitos casos à Idade Média. O Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, a propósito da necrópole de sepulturas escavadas na rocha situada em Malpartida, concelho de Almeida, defende duas tipologias de sepulturas: as designadas por “sepulturas antropomórficas” (com formas com os contornos do corpo humano, nomeadamente com um círculo para a cabeça, mais largas no local dos ombros e mais estreitas no local dos pés), enquadradas entre os séculos VI/VII e o século XI, e as “sepulturas não antropomórficas”, mais toscas e mais antigas.

As sepulturas de Porto Mancal serão claramente “não antropomórficas”, do tipo que Adriano Vasco Rodrigues designa por “sarcófagos em banheira”. Célio Rolinho Pires prefere chamar-lhes “sepulturas rupestres”, considerando, contudo, que “nunca poderiam ter servido para inumar”, mas, “isso sim, para expor o cadáver e honrá-lo antes da cremação – espécie de velório, ao tempo. Seriam, assim, camas ou campas expositórias”, integradas num acampamento lusitano.

1

Imagem do conjunto de seis “sepulturas” cavadas na rocha

2

Outra imagem do mesmo conjunto de “sepulturas”

As seis “sepulturas” rupestres distribuem-se por dois conjuntos de três cada: “um deles destinar-se-ía ao grupo guerreiro dos vélites (a classe guerreira por excelência dos lusitanos) e o outro à classe menor dos peões. As sepulturas dos vélites primam por alguma leveza e arte na forma e no tamanho, sendo notória até a sua proeminência em relação ao nível do terreno a imitar certa espécie de sarcófagos em alto; já as dos peões são simples covas rectangulares em que o próprio chão rochoso terá sido rebaixado a guilho e escopro, não sendo visível aqui qualquer tipo de antropomorfismo. A terceira cova, mais pequena e perpendicular às outras duas, destinar-se-ía eventualmente aos alvos e ruivos (crianças), como tenho sugerido”. “De referir, e a propósito, que duas das sepulturas dos vélices estão desencontradas, ou seja, uma tem a cabeceira a norte, e outra a sul”. (Célio Pires, ob. cit. pp. 226-227 e 232).

Para além das sepulturas, a necrópole de Porto Mancal, ainda na opinião deste mesmo autor, apresenta outros motivos de interesse histórico, designadamente: duas pedras, que, “pela forma, tamanho e dinâmica, cabem na simbologia vélica”, uma integrando a parede norte do “recinto”, e um outra, “altaneira e em posição emblemática”, na periferia da cabeça do “acampamento”, “verdadeiro marco representativo do espaço”; duas “aras crematórias”, uma para homens, outra para mulheres, ambas tendo na base um “podomorfo” (pé direito), o da primeira de “tamanho médio” e o da segunda de “menores dimensões”, e o facto de “em ambos os casos depararmos com o pé direito significará que a Morte, entre os lusitanos, seria considerado um fenómeno desfavorável”; dois “patíbulos executórios”, “um a poente e outro a nordeste, o das mulheres e o dos homens respectivamente, este muito próximo das aras crematórias, e “seria nestes locais que teria lugar a aplicação das penas, fosse a decapitação, a amputação de membros ou outras penas vis” (Célio Pires, ob. cit. pp. 229-232).

“O topónimo Porto Mancal – recorrendo novamente a Célio Rodrigues Pires –, pelo menos no tocante ao qualificativo Mancal, é antiquíssimo, lusitano certamente, e é, não tenho dúvidas, mais um caso paradigmático como tantos outros que tenho analisado, e cujo significado está em relação directa com as Pedras e com a cultura lusitana veiculada e chegada até nós pela via do vocabulário popular, das lendas, da toponímia, e até de alguns jogos, pelos vistos...” (Célio Pires, ob. cit., p. 232).

Concluindo, poderemos com algum rigor considerar o conjunto arqueológico de Porto Mancal de origem lusitana e datado do período entre o século VI a. C. e os séculos IV/V da nossa era, ou seja, do período pré-romano aos finais do Império e à instalação do cristianismo na região (O cristianismo proibiu as práticas de cremação, e, embora a instalação do cristianismo na Europa haja começado em período anterior, é de crer que a cristianização do Ocidente da península Ibérica só tenha acontecido mais tardiamente).


Calçadas romanas

As principais marcas do período romano são as calçadas romanas, com vários troços ainda visíveis em vários locais. No entanto, também não existe ainda uma opinião unânime quanto ao seu trajecto na região da Miuzela. As vias romanas cruzavam o Império em todas as direcções, assegurando as comunicações com Roma e com as bases militares, centros políticos e povoados mais importantes e favorecendo o desenvolvimento económico do território. Eram classificadas, consoante a largura, forma, cuidado de construção e qualidade dos materiais utilizados, em cinco categorias: estradas imperiais (viae stratae), estradas provinciais, estradas secundárias, estradas vicinais (actos) e caminhos (iter).

“A Via Romana Imperial de Conímbriga, Guarda e Salamanca passava pela Guarda, seguindo depois pelo Casal de Cinza (?), Pousada (?), Rochoso e Cerdeira (ponte romana), onde atravessava a ribeira de Noemi, continuando pela Miuzela, Porto de Ovelha, Malhada Sorda e Verdugal (Oppidania), que tinha grande importância militar e política durante o domínio romano. Transpunha a fronteira em Aldeia da Ponte (Font da Tigela com inscrição rupestre romana e ponte romana), até alcançar Cidade Rodrigo e Salamanca.

A Via Secundária da Cerdeira a Vilar Maior e daqui para Aldeia da Ponte e Aldeia do Bispo ligava a Via Imperial da Guarda a Salamanca, através de uma derivação com origem na Cerdeira, e alcançava a Ponte de Sequeiros. Passava por Badamalos (castro lusitano-romano) e Vilar Maior (castro romano-lusitano, troços de calçada romana, ponte romana). Vilar Maior estava ligada a Aldeia da Ribeira (?), atingia Aldeia da Ponte e prosseguia com a Via Romana Imperial da Guarda a Salamanca.

Vilar Maior estava ligada ao Escrabalhado (troços de calçada romana), Rebolosa (troços de calçada romana), Alfaiates, e prosseguia com a Via Romana Secundária da Guarda a Aldeia do Bispo.

Vilar Maior estava ligada ao Verdugal (Oppidami), e depois daqui à Via Romana Imperial da Guarda a Salamanca”

(José António Rebocho Esperança Pina, A Ponte Romana sobre a Ribeira de Cesarão em Vilar Maior, Praça Velha, Revista Cultural da Cidade da Guarda, Câmara Municipal da Guarda, Ano XIII, N º 28, 1 ª Série, Novembro 2010, p. 259).


Lagaretas talhadas na rocha

Há poucos anos, foram referenciadas em propriedades rurais da Miuzela algumas lagaretas talhadas na rocha, umas mais evoluídas que outras.

3

Lagareta talhada na rocha

4

Outra perspectiva da mesma lagareta

Ainda não estudadas suficientemente, as lagaretas serão, porventura, outros registos arqueológicos do período romano ou imediatamente posterior, destinadas à produção de cerveja ou vinho.

Numa propriedade próxima da Igreja Matriz foi identificado um outro lagar talhado na rocha, mas de uma tipologia mais evoluída. Mais antigas, contudo, serão as presumíveis lagaretas talhadas toscamente num grande barroco junto às paredes altas. Admitindo-se que neste local tenha tido origem a Miuzela, é bem provável que estas últimas supostas lagaretas datem desses primeiros tempos de fundação do primitivo povoado.

5

Imagem de outra suposta lagareta rudimentar às Paredes Altas


Castelo da Miuzela

Outra questão que permanece incerta é a da eventual existência de um castelo na Miuzela. O general João de Almeida, na sua obra “Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses”, afirma tê-lo ainda visto em fins do século XIX (era natural da localidade próxima de Vila Garcia, do concelho de Almeida), admitindo que a sua fundação se devesse aos Suevos para resistirem às incursões dos Visigodos antes da unificação dos dois povos. Constaria de uma torre quadrada e de uma cerca para abrigar a população. Segundo a tradição oral, o castelo teria sido construído ou reconstruído durante as guerras da Restauração.

O certo é que hoje, no suposto local onde se situaria, não resta qualquer indício do castelo, nem ninguém na Miuzela tem memória da sua existência. Contudo, as características geográficas daquele local – no cume de um promontório com um áspero declive das encostas a Sul descendo sobre o rio Côa – e as disputas territoriais até final do século XIII (1297), primeiro entre Suevos e Visigodos e depois entre portugueses, leoneses e mouros, e entre portugueses e leoneses, pela posse dos territórios que aquele rio dividia, tornam verosímil a hipótese da existência de um castelo primitivo do tipo descrito por João de Almeida, ou mais provavelmente de uma atalaia, com uma função primária de vigilância sobre a margem oposta do rio. A localização, bem em frente, do castelo de Vilar Maior reforça esta hipótese. Após a reconquista definitiva de Vilar Maior aos mouros em 1230 e, sobretudo, depois da celebração do Tratado de Alcanices, em 1297 e com o avanço da Reconquista cristã para sul, a sua função militar terá perdido interesse, devendo ter sido então abandonado, do mesmo modo que o foram outros castelos da margem esquerda do rio Côa em povoados pequenos, como o de Vila do Touro, no concelho de Sabugal. A hipótese de haver sido reconstruído durante a Restauração não é descartável. E também admissível que as suas pedras possam ter sido utilizadas na edificação de construções posteriores, como a igreja, a torre do relógio, capelas, fontes, casa da botica, muros e habitações particulares. A dimensão, bem visível, de algumas pedras aponta nesse sentido. Mas a ausência de vestígios no suposto local do castelo continuará a alimentar a dúvida quanto à sua existência.


Ponte de Sequeiros

A ponte de Sequeiros sobre o rio Côa, construída numa área de vale um pouco cavado, é considerada o ex-libris da freguesia, embora situada precisamente no limite com Valongo do Côa e já na área desta freguesia do concelho do Sabugal.

É uma ponte em alvenaria de cantaria de granito com aparelho regular, suportada por três arcos, em que o central é mais largo e alto. Os arcos são acompanhados pelo tabuleiro que se apresenta rampeado, fazendo ângulo ao centro. Tem de comprimento cerca de 65 m e de largura, entre guardas, cerca de 4,5 m. O tabuleiro encontra-se a cerca de 20 m do rio, e está protegido por paralelepípedos de granito com cerca de 0,30 m de espessura.

Dos lados dos pegões encontram-se dois robustos e enormes talhamares de perfil triangular, sendo a jusante rectangulares, com degraus escalonados, que poderão servir de reforço estrutural para cheias de maior intensidade e consequente maior velocidade das águas do rio. O seu pavimento é lajeado, tendo continuidade nos acessos, acompanhando as rampas, que no topo do arco central formam uma superfície ligeiramente abatida e preenchida com saibro. No acesso da margem direita está uma torre arruinada de que restam as paredes e dois arcos de acesso em grossa alvenaria de granito, que indica ter sido uma ponte fortificada ou com portagem.

6

Outras perspectiva da Ponte de Sequeiros

Até ao século XIV a fronteira com o reino de Leão foi delimitada pelo rio Côa, e, apesar de se apontar a sua construção para finais da primeira metade do século XV (provavelmente no ano de 1447), a ponte poderá ter funcionado como parte do dispositivo militar que em finais da Idade Média permitia regionalmente o controlo fronteiriço de pessoas e bens. Manteve-se até fins do século XIX, princípios do XX, como uma importante passagem entre as regiões das duas margens do rio Côa. Juntamente com a ponte de Ucanha, constitui uma das duas únicas pontes fortificadas existentes no país. A ponte é considerada como Imóvel de Interesse Público, nos termos do Decreto n º 38, publicado no D.G. n º 230 de 06.11.de 1951.

(Dados extraídos de registos do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico e da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais).


Conjunto megálico eventualmente de origem lusitana

Recentemente foi referenciado próximo da Miuzela, num local conhecido por Pedro Soares, situado ao lado da estrada Miuzela - Porto de Ovelha, um conjunto megálito que se supõe poder ter sido mais um lugar de culto ou de sacrifícios lusitano.

Uma das pedras do conjunto poderá ter servido de patíbulo sacrificial ou executório, pela forma e dimensões como está escavada, nela cabendo um corpo humano deitado, e por estar deliberadamente assente sobre uma outra pedra formando uma espécie de altar. Infelizmente, com os recentes trabalhos de alargamento da estrada Miuzela – Porto de Ovelha, estas pedras foram desnecessariamente destruídas em 2011.

7

Conjunto que se admite ter sido um patíbulo sacrificial ou executório.

Contudo, outro conjunto de dimensões mais reduzidas, ainda existente, poderá ter tido idêntica finalidade, ou representar um podomorfo (pé direito), neste caso com um sentido de interpretação desfavorável.


8


Duas outras pedras apresentam formas fazendo lembrar as figuras de um cágado e de uma marafona ou matrafona, figuras associadas, segundo alguns autores, à cultura lusitana.

9

Pedra supostamente representando um cágado

10

Pedra supostamente representando uma marafona

Segundo Célio Rolinho Pires, a figura do cágado na cultura lusitana tem a ver, simbolicamente com os kakós (grego), ou porcaria, as coisas sórdidas em sentido ético e social ou os comportamentos sociais indignos; por seu turno, as marafonas ou matrafonas pretenderiam significar as mulheres de mau porte, adúlteras ou meretrizes, que eram objecto de severas punições, incluindo a pena de morte. Assim, associando as simbologias do cágado, do podomorfo e da marafona com a existência de uma suposta pedra de decapitação, este local poderia ter sido um lugar de aplicação da pena de morte a mulheres condenadas por adultério. Uma mera hipótese.

Interessante é também a imagem de uma outra pedra no mesmo local, fazendo lembrar a cabeça e o tronco de um homem deitado.

11


Qualquer que seja o seu eventual valor histórico, estamos em presença de um interessante conjunto de rochedos (barrocos) que justifica plenamente a sua preservação.


12

Celtas e Lusitanos

Os lusitanos constituíram uma comunidade étnica de povos ibéricos de origem indo-europeia, que habitaram a porção oeste da península Ibérica desde a Idade do Ferro. Não deixaram registos nativos antes da conquista romana, e as primeiras informações a seu respeito foram transmitidas por autores gregos e romanos da antiguidade, o que por vezes causou problemas na interpretação dos seus textos.

Comparando a antiga localização dos lusitanos com os limites de Portugal, vários autores da Renascença confundiram frequentemente Lusitanos com Portugueses. Alexandre Herculano colou-se num ponto de vista exageradamente oposto, recusando admitir qualquer relação étnica entre os antigos lusitanos e os Portugueses. A esta posição contrapôs Martins Sarmento exagero idêntico, sustentando que os Portugueses descendiam em linha directa dos lusitanos, e que estes possuíam uma das mais puras árvores genealógicas dos povos antigos. Hoje, a maioria dos autores apoia a tese da celticidade dos lusitanos ou, pelo menos, da celtização dos lusitanos, ou seja, de que proviriam do grande conjunto dos povos indo-europeus, conhecidos genericamente por celtas, que, organizados em múltiplas tribos, se espalharam pela maior parte do oeste da Europa a partir do segundo milénio a. C. . A primeira vaga destes povos terá passado os Pirinéus por volta do ano 900 a. C., atingindo o noroeste da Península cerca de três séculos mais tarde, misturando-se com os povos locais, designadamente com os iberos, provenientes do Norte de África, que viveriam nas regiões montanhosas no norte e centro da Península Ibérica (onde nascem os rios Douro, Tejo e Guadiana) desde o século VI a. C. , muito embora não haja unanimidade entre os autores a este respeito. Boa parte da população da Europa ocidental pertencia às etnias celtas até à conquista dos territórios pelos Romanos, tendo então a maioria sido integrada por estes, ainda que o modo de vida tenha, sob muitas formas e com muitas alterações resultantes da aculturação devida aos invasores ou posterior cristianização, sobrevivido em grande parte do território por eles ocupado. Os Celtas são considerados os introdutores da metalurgia do ferro na Europa.

Se bem que ainda não haja uma opinião definitiva sobre o assunto, os lusitanos terão constituído uma poderosa tribo dentro do conjunto de povos célticos, que deram o nome a toda a zona ocidental da Península, mas os estudos arqueológicos realizados levaram a situá-los mais concretamente na região do planalto da Meseta Ibérica, entre o Douro e o Tejo, que a terão ocupado já no século IV a. C. . O nome de Lusitani seria um colectivo que englobava diversos popoli. Os lusitanos tinham uma civilização, agrária, pastorícia e guerreira, relativamente avançada. Eram aguerridos, formavam várias tribos, concentravam-se em aglomerados fortificados, viviam da agricultura, já bastante desenvolvida (a vinha, o trigo, a cevada), do pastoreio e da pesca, e exploravam também os metais. Quanto ao armamento, usavam um pequeno escudo redondo e utilizavam um punhal ou sabre e espada, o dardo ou lança de arremesso em ferro e a lança de ponta de bronze para a estocada. Praticavam cultos a vários deuses, e também às forças da natureza, às fontes, aos cursos de água, às fragas e rochas. Os santuários eram erigidos nas massas rochosas de locais com certo domínio de paisagem, à beira de cursos de água ou no alto dos montes. Sacrificavam a Ares, deus da guerra, não só os prisioneiros de guerra, como igualmente cavalos e bodes. Quando o sacerdote feria o prisioneiro com um golpe no ventre, fazia vaticínios conforme o modo como a vítima caía por terra, e também em função do exame às palpitações das entranhas sem as arrancar, ou às veias do peito. Aos cativos eram cortadas as mãos, oferecendo aos seus deuses as direitas.

A região dos Hermínios e as Beiras eram povoadas pela tribo dos vetões, uma das mais evoluídas da Lusitânia. Alguns autores admitem tratar-se de povos distintos, mas vários outros recusam qualquer fronteira entre Vetões e Lusitanos. Após a conquista pelos romanos e a reorganização territorial e administrativa da península Ibérica realizada no tempo de Augusto, a Lusitânia passou a constituir uma das três grandes províncias da Hispânia, ficando compreendida entre o Douro e o Guadiana, alargando para o oriente pelo antigo território dos vetões, com a capital em Emerita Augusta. No tempo de Cláudio (41-54 d. C.) a província lusitana foi dividida em três conventos jurídicos: Conventus Emeritensis, Conventus Pacensis e Conventus Scallabitanus. Não existe unanimidade entre os especialistas relativamente aos limites da Lusitânia e dos seus Conventus, nem quanto aos dos povos que os habitavam. Mas, com base nas conclusões de um grupo de arqueólogos reunido num Seminário realizado no Centre National de Recherche Scientifique, em Paris, em 1988, que procurou definir esses limites, a região da Miuzela ficaria no Conventus Emeritensis; e, com base nos estudos levados a efeito pelo Professor Jorge Alarcão, presente naquele seminário, a zona do planalto da Guarda/Sabugal, e portanto da Miuzela, seria habitada no tempo do imperador Trajano (98-117 d. C.) pelo popoli que os romanos designavam por Lancienses Transcudani.


Augusto José Monteiro Valente
Julho de 2012


Bibliografia:
“Lusitanos”, in Dicionário de História de Portugal, Direcção de Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, Volume IV.
Célio Rodrigues Pires, “Na rota das pedras – Em busca do país que somos”, edição do autor, 2011.
Jorge de Alarcão, “Novas perspectivas sobre os Lusitanos (e outros mundos)”. Revista Portuguesa de Arqueologia. Volume 4. N º 2. 2001. Pp. 293-349.