DAS ORIGENS E DO DESENVOLVIMENTO DA MIUZELA
José Pinto Peixoto
1. ENQUADRAMENTO ADMINISTRATIVO
A Miuzela é uma freguesia da Província da Beira Alta, Distrito da Guarda e do Concelho de Almeida. Está localizada numa encosta, virada a poente, no grande planalto que se estende desde a Guarda pela fronteira fora e é sulcado, entre outros, pelos Rios Côa e os seus afluentes, a Ribeira das Cabras e o Rio Noemi. O limite da Miuzela encerra uma área da ordem de 1420 ha (hectares). Dista, aproximadamente, quatro quilómetros do Rio Côa e uns dois quilómetros do Rio Noemi, vulgarmente designado pela "Ribeira". A Miuzela é um julgado, que pertence à Comarca de Almeida, tendo já pertencido às Comarcas de Trancoso, de Pinhel e do Sabugal.
Tem um apeadeiro, no Caminho de Ferro da Linha da Beira Alta, que dista da povoação cerca de dois quilómetros. Tem um posto da Guarda Nacional Republicana, dependente do Comando Territorial da Guarda. Tem um posto médico, um posto público de telefone e um posto de Correio. Não tem anexas.
Há também, uma outra povoação, com a designação de Miuzela, anexa à freguesia das Antas, no Concelho de Penalva do Castelo.
1.1 Origens
1.1.1 Quem foram os nossos Avós?
A região da Miuzela tinha boas condições para a existência do homem pré-histórico, mesmo nos períodos do Paleolítico e do Neolítico. Tem um vasto horizonte, no qual se avistava a caça e o inimigo. Tem grutas e cavernas naturais, nas várias ravinas e por baixo dos barrocos; tem a água das fontes; correm rios e riachos. Dispunha de carne de javali, de cabras, de gamos selvagens, de coelhos e de aves. Havia peixes e rãs nos rios Côa, na Ribeira e nos riachos. Tinha as bolotas dos carvalhos, as castanhas, os mustajos, os abrunhos, as amoras e as ginjas. Tinha verduras frescas e naturais, como as meruges, as "baldroegas", as "leitugas", etc..
A descoberta recente das figuras rupestres nas margens do Côa, na região de Castelo Melhor e Vila Nova de Foscôa, vem confirmar esta hipótese.
Os lusitanos teriam ocupado esta nossa região (entre Douro e Tejo), já no séc. IV a. C., de mistura com os turdulos, segundo Frei Bernardo de Brito (“Monarchia Lusitana”, vol. I, Cap. XXX). Os lusitanos tinham uma civilização, agrária, pastorícia e guerreira, relativamente avançada,
Eram aguerridos e formavam várias tribos, numa espécie de federação, sem qualquer coesão política. Concentravam-se em aglomerados fortificados, vivendo da agricultura, já bastante desenvolvida (a vinha, o trigo, a cevada), do pastoreio e da pesca. Exploravam também os metais.
A região dos Hermínios e as "suas beiras", eram povoadas pela tribo dos vetões, uma das mais evoluídas da Lusitânia. A região da Miuzela teria pertencido, então, à Vetónia.
Quando os Celtas chegaram, já na Idade do Ferro, os lusitanos eram muito mais evoluídos.
No séc. II a.C., os romanos iniciaram a conquista da Lusitânia, o que não foi muito fácil. Os lusitanos, comandados por Viriato, senhor duma estratégia local, exímia (era um conhecedor profundo dos vales, desfiladeiros e montanhas dos Hermínios), bateram por várias vezes os romanos. Em geral, atraíam-os em ciladas e, usando a guerrilha, conseguiam dizimar as legiões romanas.
Depois do assassínio de Viriato, as legiões romanas quase bateram os lusitanos, que, no entanto, ciosos da sua autonomia, conseguiram a chefia de Sertório, general romano, exilado (depois das lutas entre Mário e Sila) e, assim, continuar a resistência e derrotar os romanos. Sertório foi, também, assassinado, no ano 72 a.C., terminando a luta com a submissão dos lusitanos, que, mesmo assim, resistiram quase dois séculos à invasão romana. Mais tarde, com César e Pompeu, começou a romanização da Península Ibérica, que, em rigor, corresponde à fase proto-histórica de Portugal.
O domínio romano tornou-se definitivo na região e trouxe a paz e a prosperidade, levando os lusitanos a adaptarem-se e a romanizarem-se.
Os romanos organizaram, administrativamente, a Península, em várias províncias, entre as quais se distinguia a Lusitânia, que ia desde o Douro, passava o Tejo, até ao Guadiana. Abriram estradas, construíram pontes, aquedutos e outros monumentos, cunharam moeda, fomentaram a exploração de metais e incentivaram as trocas comerciais. Desenvolveram a agricultura e os grandes centros urbanos e fundaram grandes cidades.
Deve-se aos romanos a instituição dos municípios (concelhos, termos), que perduraram, pode dizer-se, até hoje.
Além do mais, legaram-nos o direito e a língua latina, que constitui a base do idioma galaico-português, do qual resultou o português, A "pax romana" gerou um bem estar nos povos e, verificou-se um grande aumento da população na Lusitânia (1.200.000 habitantes, segundo Plínio).
Entretanto, no séc. V, deu-se a invasão da Península pelos alanos e vândalos, que ocuparam a nossa região da Lusitânia e pelos suevos, que foram fundar um reino na região do Minho-Galiza.
Depois, por volta de 415, vieram os visigodos, que constituíram um poderoso império na Península. A monarquia visigótica durou 150 anos e foi nesta fase, que se instituíram as grandes dioceses do futuro Portugal, designadamente, as que mais interessam à história da Miuzela e da região, como a de Viseu, a de Lamego, a da Egitânia e a de Caliábria, a que adiante nos referiremos, em pormenor.
A monarquia visigótica entrou em crise e, em 711, dá-se a invasão árabe, ou antes, a invasão dos berberes e mouros, apoderando-se, rapidamente, dos territórios, em que se havia de formar Portugal. A Lusitânia caiu em 713 e em 716 os árabes já estavam em Alfaiates e, portanto, dominavam também a região em que se viria a desenvolver a Miuzela nos séculos IX e X.
O domínio muçulmano acentuou-se e durou até à reconquista Cristã, que começou por expulsar os árabes da Galiza, até ao norte do Douro, logo no séc. IX. Mas, a nossa região, só teria sido libertada, mais tarde, nos séculos X e XI, por Fernando Magno, passando a fazer parte do Reino de Leão. Parte dos mouros foi reduzida ao cativeiro, enquanto que outra parte abandonou a região, deslocando-se para as regiões do Sul da Península. Claro que os moçárabes (cristãos com hábitos e culturas árabes) tiveram um papel decisivo na reconquista e, depois, no povoamento dos territórios, que iam sendo conquistados.
Os árabes legaram-nos, além das práticas agrícolas, e de algumas técnicas, muitos termos, (substantivos), em geral, começados por al, az ou aç, tais como aldeia (al-dai'a), alcaide (al-qa'id), albarda, alforges, etc.; azeite (aceite), azêmola, azeitona, azebre, azenha, etc.; açafate, açude, açougue, etc.. Deixaram-nos, ainda alguns hábitos de higiene e a tradição de muitas histórias sobre moiras encantadas e uma certa propensão para o fatalismo.
À região de Ciscôa (de aquem-Côa, portanto, a Miuzela), fez sempre parte de Portugal desde a sua fundação, mas a posse só ficou consolidada nos tempos de D. Sancho I e D. Sancho II, que deu a Castelo Mendo o primeiro foral (1229).
A região de Além-Côa só viria a passar, um século depois, para a posse de Portugal, já no tempo de D. Diniz, após o tratado de Alcanices (1297).
Depois, seguiram-se as vicissitudes do Reino de Portugal, através da sua história, até aos nossos dias.
1.1.2 Como terá nascido a Miuzela
É, extremamente, difícil falar sobre a origem de povoados, quando não existem documentos ou, pelo menos, uma forte tradição oral. Quando muito, podem fazer-se conjecturas, baseadas em teorias, mais ou menos, plausíveis.
Segundo alguns autores, a maioria dos povoados antigos da Beira ter-se-ia desenvolvido, em pequenos aglomerados, em torno, ou nas vizinhanças, de "castros" lusitanos, alcandorados em montes ou colinas, que, depois, se teriam transformado nos "oppida" dos romanos. Às "citânias celto--lusitanas" (aglomerados mais importantes), seguem-se as "vilas romanas".
Com base nesta teoria, podemos explicar a tradição, que corria ainda na minha infância, da existência de um povoado ou aglomerado anterior ("outra pequena Miuzela"?), nas proximidades do "Barroco Longo" e da "Fonte Nesteva", onde teriam sido encontrados alguns vestígios de uma povoação (cacos de telhas; restos de paredes soterradas; minas e valados, etc.).
Como se depreende dos trabalhos do general João de Almeida, podemos admitir a existência de um pequeno castro lusitano ou de um fortim nos "Altos do Moinho de Vento", onde está instalado o ponto geodésico.
De facto, trata-se de uma linha de alturas estratégica, que tem um vastíssimo horizonte, principalmente, para nascente, onde se enxergam as terras de Além-Côa, até às serranias de Espanha (Guadarrama, etc.) e para poente, onde se avistava todo o planalto, com os "Altos da Parada", os "Montes do Jarmelo", a Guarda, e, ao fundo, a Serra da Estrela. Para norte, descortina-se a "Marofa" e, em dias de boa visibilidade, até, as Serras de Trás-os-Montes. Para Sul, a Serra da Malcata e outras "Serras do Sabugal", a Serra de S. Martinho de Trabejo. E, o que é importante, dos altos de Santa Bárbara e do Moinho de Vento enxerga-se ainda a "Citania Oppidana" (Verdugal), forte estação romana, que se desenvolveu na região planáltica da Meseta, entre o Côa e o Águeda, a uns quatro quilómetros da Malhada Sorda.
Os altos do "Moinho de Vento" eram, pois, um lugar apropriado, por excelência, para a construção dum castro. As pedras aparelhadas, que por ali existem, em casas antigas, e as dos alicerces do velho moinho de vento e as das bancas do antigo mercado das vacas, poderiam ter sido provenientes de um castro, que constituía, também, uma atalaia de observação e de vigia do inimigo.
Segundo Frei Bernardo de Brito, toda a região entre o Douro e o Tejo, até Viseu, e, portanto, o planalto, teria sido ocupado pelos túrdulos (Cudanos de Ciscôa e Transcudanos de Riba Côa; para os romanos o Côa era designado por "Cudam"); depois, a região foi tomada pelos romanos e, posteriormente, pelos suevos e visigodos; a seguir (712), foi dominada pêlos árabes (e mouros) e, finalmente, depois da Reconquista (Fernando Magno em 1039), foi ocupada pelos Cristãos do Reino de Leão. A influência romana está patente na região, como demonstram a etimologia do termo Miuzela, alguns achados na Ade e na Miuzela, a existência de sepulturas cavadas na rocha ("Porto Mancal", "Eiras Velhas") e o aparecimento, segundo consta, de uma ânfora. Também há notícia de que se encontraram moedas romanas nas proximidades da Ponte de Sequeiros.
A verdade é que houve, depois, um longo período, que se estendeu até D. Sancho I, em que toda a região do planalto da Guarda e do Jarmelo, foi palco de lutas e pelejas, entre os cristãos e os mouros, alternando a sua posse, entre os leoneses e os mouros. Finalmente, a região da Miuzela ficou, a partir de D. Sancho I, na posse definitiva dos portugueses. Como se sabe, devido às incursões constantes dos mouros, e a fim de assegurar melhor a defesa do Reino, como havemos de ver, D. Sancho I transferiu a Sé da Egitânia (Idanha) para a Guarda.
É natural que, na fase anterior à Reconquista, existissem pequenos aglomerados populacionais, dispersos pela encosta suave e de boas terras expostas a nascente e entremeadas pelos pequenos vales do "Barroco Longo" e da "Fonte Nesteva". Toda esta zona, até à "Nave do Clérigo", é muito aprazível e bastante fértil. Aquela localização permitia estar de atalaia e enxergar o inimigo invasor, que vinha, sempre, de leste, seguindo, no horizonte, a linha de defesa natural, que era o Côa e, assim, organizar a defesa.
Depois, com a quase ocupação de toda a Península pelos árabes, viveu-se um período de quase dois séculos, sem guerras, até se dar a reconquista cristã, alastrando do Norte e do Leste.
Teria sido neste período, de domínio sarraceno, que a actual povoação da Miuzela (Miosella - cujo étimo é de origem latina) se começou a concentrar e a desenvolver na outra encosta, mais declivosa, mas mais banhada pelo Sol, tão do agrado dos árabes, começando por pequenos núcleos de moradores, aglomerados em torno das fontes "do Barroco", das "Amigas Velhas", "do Vale" e da "Santa Bárbara", como preconiza o Dr. Brardo. Estas fontes, todas de mergulho, são do tipo romano-medieval.
Como quer que seja, na Idade Média, a Miuzela (Miosella) já devia ter sido uma povoação importante na região.
1.2 Origem do Topónimo Miuzela
A pedido do Prof. Malaca Casteleiro, um seu colaborador, especialista em etimologia, abordou o problema da origem do topónimo Miuzela. Pelo seu interesse vamos transcrever, parcialmente, o seu estudo.
Depois de algumas considerações, sobre a identificação da Miuzela, da sua situação geográfica, etc., diz o seguinte:
"Acresce que em todo o País, não é referida qualquer outra povoação, cujo nome se inicie por Miu..., sendo já fácil de explicar a parte final da palavra (-zela), que corresponde a um diminuitivo de origem latina.
Dado que a povoação se situa junto da Raia de Espanha, ainda mais próxima, antes do Tratado de Alcanices, consultei nomes comuns no "Diccionário crítico Etimológico Castellano y Hispânico" de Joan Corominas (Madrid, 1989); encontrei o nome Miul no artigo de médio (Vol. IV, pág. 15), havendo também as formas portuguesas miul e miúlo (zona da Serra da Estrela) do latim "modiolus", que designam o meão do rodado do carro de bois, peça que ocupa todo o diâmetro da roda e no qual o assentam as cambas.
Talvez que o facto da localidade na sua parte mais alta e antiga se situar no cimo duma prolongada lomba com as vertentes para a Ribeira do Noemi e para o Rio Côa, levasse a privilegiar no nome a noção de situação intermérdia (como é a do miúlo da roda do carro de bois), escolhendo para base do nome da localidade miul, a que se juntou o sufixo diminuitivo latino -cilla, que normalmente evolui para -zela, em Português.
Veja-se o que acontece na palavra donzela:
Domina > domna "senhora" + cilla > dommicilla > donzela (J. Corominas. vol. II, pág. 531)"
Outros colaboradores do Prof. Malaca Casteleiro analisaram também o problema.
O topónimo de Miuzela resultaria, assim, de ser uma "localidadezinha", que fica numa posição intermédia entre o Rio Côa e a Ribeira do Noemi no cruzamento das estradas Imperial da Guarda a Salamanca e a Transversal, secundária que, vinda do Norte, se dirigia pela Ponte de Sequeiros para Alfaiates, passando por Vilar Maior, etc. (General João de Almeida).
Ficava também numa posição intermédia entre as estações Romanas de Lancia Oppidana4 (Guarda) e Citania Oppidana5 (Verdugal, Malhada Sorda).
A grafia Miosella ou Miosela é uma corrupção de Miuzela, visto que o radical mios é de origem grega, com significados de rato ou de músculo, que não se ajustam às circunstâncias. Além disso, não seria coerente juntar um sufixo latino (-cilla) a uma raiz de origem grega (mios).
Por isso, para terminar o Dr. José Ribeiro Pereira conclui dizendo:
"Com os elementos disponíveis não me foi possível chegar a posição mais plausível."
(in José Pinto Peixoto, “MIUZELA – A TERRA E AS GENTES”, p. 21-28)